Por Alessandra Lucchese.
Uma das vantagens que vejo de ter 49 anos é ter adquirido segurança suficiente para admitir que não sei ou que sei pouco sobre algo sem que isso me faça mal ou perturbe minha autoestima. Reconhecer a própria ignorância é muito libertador pois me permite aprender e reaprender a qualquer momento da vida, sem ficar presa nas teias da arrogância intelectual e enclausurada num saber temporal e limitado que em pouco tempo pode se transformar em ignorância.
Racismo é um dos temas que eu admito saber ainda muito pouco. Estou humildemente aprendendo a ser antirracista, e digo humildemente porque certamente irei ainda errar nas minhas ações acreditando ser o certo, vou levar ainda muitos choques de realidade e ficar perplexa ainda centenas de vezes, porque sim, quando convivemos com quem sofre racismo a perplexidade é um status recorrente se você realmente prestar atenção em como as coisas são.
Estou aprendendo sobre os privilégios que tenho apenas pela minha cor, privilégios estes que não fiz nada diferente para merecer mas que significativamente definiram o ponto de partida da trajetória da minha vida se eu comparar com o ponto de partida da trajetória de uma mulher negra também nascida no dia 31 de agosto de 1971, na cidade de Novo Hamburgo, no Rio Grande do Sul, e muito provavelmente no mesmo hospital público no qual nasci.
A matemática, minha companheira racional, vai predizer que esta mulher negra dificilmente fez curso superior como eu, que se ela estiver empregada está ganhando no máximo 30% do que eu ganho, que ela está duas vezes mais exposta à violência do que eu e quatro vezes mais exposta ao assédio do que eu. A chance dessa mulher negra, nascida no mesmo dia que eu, ser uma profissional com cargo de liderança é pífia. A chance de ela ter sido rejeitada, menosprezada e maltratada apenas por conta de sua cor é de 100%!
Essa mulher negra provavelmente tem um filho ou uma filha que em 2020 poderá já estar no mercado de trabalho e a trajetória desse filho ou filha será muito parecida com a da mãe, com chances muito menores do que a minha filha terá, pois a verdade é que pouco mudou na prática nestes 49 anos. Basta ver a repercussão alcançada pelo anúncio do Magazine Luiza de um programa de trainees apenas para negros para vermos como pouco mudaram as nossas estruturas sociais.
É tão óbvia a necessidade de ações diferentes para mudar as trajetórias de vida dos negros, mas as pessoas mencionam violação ao princípio constitucional da isonomia como razão para considerar equivocada a ação do Magazine.
Que isonomia, cara-pálida? Lembra daquela mulher negra que projetei ali em cima? Ela nunca teve isonomia em relação a mim, as chances dela sempre foram assustadoramente menores para tudo que era bom e assustadoramente altas para tudo que era ruim na sua trajetória de vida. Apenas porque ela nasceu negra.
No meu aprendizado diário e doloroso sobre o racismo entendi que são ações afirmativas como essa do Magazine que poderão realmente interferir na prática nas trajetórias de vida de negros, e aí entra o compliance.
Estar em conformidade significa estar de acordo com todas as leis e regramentos, significa que o artigo 5º da Constituição Federal Brasileira deve ser atendido também dentro da sua empresa, e para que a igualdade imposta por esta norma seja alcançada as ações afirmativas servirão para trazer equilíbrio às diferenças de poder da sociedade. O Compliance trabalhista estará calcado justamente nas ações diferentes em prol de desiguais e não na igualdade de ações para as diferenças.
Que venham muitas outras ações como essa do Magazine a ponto de tornar o Artigo 5º da Constituição Federal tão natural na nossa vida que nem precisaria mais estar escrito no principal regimento de um país.
E se você branco continua incomodado com esse Programa de Trainee exclusivamente para pessoas negras, ótimo: você está tendo a oportunidade de experimentar como é ser deixado de fora de uma oportunidade apenas pela tua cor. Agora você decide como quer aproveitar essa experiência: você vai ajudar a mudar o mundo ou gritar para que ele continue como está?