Por Alessandra Lucchese.
Uma das coisas mais apaixonantes para mim na minha carreira profissional é trazer o Compliance para as relações de trabalho: buscar conformidade não só dos regulamentos, mas principalmente das nem sempre previsíveis e multifacetadas interações entre todos as pessoas que compõem aquela organização de trabalho. Trabalhar com Compliance trabalhista me dá a oportunidade de evocar temas e ideias que sequer foram mencionados na graduação de Direito, mas que hoje são os que me movem com energia e satisfação na minha carreira.
Partindo do princípio de que a ética está na pessoa e não no papel, nas relações de trabalho encontro toda espécie de conflito que pode ou não ser uma inconformidade com as regras daquela organização ou com o padrão ético que lá se espera manter.
Assédio de qualquer tipo, por exemplo, na MINHA ética pessoal é uma inconformidade grave e que expõe a empresa aos mais diversos riscos. E dos múltiplos tipos de Assédio o Sexual está no topo das inconformidades nas relações de trabalho.
Quando empresas que também pensam assim e estão dispostas a enfrentar a questão me chamam para fazer parte das ações de enfrentamento do assédio, tenho o privilégio de explorar o tema com os grupos sociais mais diversos dessas organizações e destes grupos extrair insights fantásticos com os quais vou moldando minhas ideias. São aqueles para quem pretensamente ensino com quem mais aprendo.
E invariavelmente nos treinamentos e palestras que ministro sobre o tema assédio sexual, capto da minha plateia uma grande confusão de pensamentos e sentimentos que não se esgotarão ali. O tema por si só é provocativo e incômodo, mas quando começam os questionamentos básicos sobre “o que pode e o que não pode” nesta seara, é quase tangível a confusão interior nas cabeças daqueles que ali se entregam ao momento e realmente começam a (auto) questionar sobre os seus comportamentos e o dos outros que os rodeiam.
Corriqueiras perguntas e comentários dos homens, e também de algumas mulheres, sempre vem em torno das falas de elogio: “agora não se pode nem elogiar que já acham que é assédio”. “Quanta frescura, não se pode falar mais nada”. “Que mal tem eu dizer que ela está bonita hoje?”. “Desde quando elogiar a colega é assédio?”. “Por que elogios de uns colegas pode e de outros é assédio?”.
Não tenho respostas para todas as perguntas, nem a pretensão de ter. Relações humanas são um tema em constante mutação, tão orgânico como a ética de cada um, de cada lugar e de cada época. Mas sempre proponho ideias e novas perguntas, para costurar com todos um novo espectro de pensamento. Assim como trago aqui a proposta de pensarmos sobre o quanto há em torno do elogio e como ele pode fertilizar o terreno para o assédio e porque passei a considerar os elogios dispensáveis no ambiente de trabalho dentro das boas práticas de conformidade.
Portanto, te convido a pensar sobre isso e vou explicar como eu vejo para te instigar a pensar sobre como você vê.
Nós mulheres, historicamente, fomos criadas para agradar, enfeitar, iluminar, acolher, maternar, embelezar. Pensem nas coisas que ouvimos reiteradamente ao longo da vida e quantas são adjetivos que supostamente somos responsáveis por nos tornar merecedoras de receber pois, do contrário, não cumpriremos nosso papel, o que significaria que não seremos amadas, pois incompletas. Então nascemos princesinhas, fofinhas de fraldas, logo uma mocinha linda e educada. Depois do linda mocinha queremos ser mulheres gostosas, objetos de desejo e ouvintes de muitas palavras de aceitação e apreciação. Mais adiante lutamos por uma beleza eterna, agarradas aos adjetivos que sustentaram nosso feminino ao longo da vida, ainda querendo/precisando ser apreciadas por quem nos olha.
Nos acostumamos a delegar nossa autoestima ao olhar do outro. Se vierem do outro os adjetivos que preciso para exercer meu papel, então sim, minha autoestima estará elevada. Mas se do olhar do outro nada vier, ou vier o desprezo, virá junto a definição da minha autoestima, pois eu deixei que assim fosse, eu deixei você me dizer se sou bonita ou não, se sou desejável ou não, se mereço muito ou se mereço pouco. Eu deixei o outro me dizer se estou bem ou se estou mal.
E aí quando começamos a refletir sobre o assédio sexual colocamos em xeque os pilares nos quais construímos nossa própria autoestima. Peraí, me olhar como um pedaço de carne é me objetificar, é violar minha dignidade…, mas se não me olharem assim como saberei se sou desejável? Como alimentarei minha autoestima sem me darem os adjetivos para o qual fui criada para receber? Como saber se sou boa o suficiente se não me disserem? Como posso viver feliz sem saber o que o outro pensa de mim?
Conseguem imaginar a confusão que brota quando começamos a pensar nas falas e ações que convivemos e que podem se transformar em assédio?
Assim como a confusão de ideias é tangível, também posso sentir no ar o tamanho da emoção de algumas das mulheres das minhas plateias ao se darem conta que nossa autoestima foi alimentada pelo outro e não por ela mesma, e percebem que é a soma de comportamentos de homens e mulheres que transbordam em uma cultura de assédio sexual e que dizer não ao assédio e mudar isso significa se apropriar de si mesma, assumindo que nutrir e cuidar da sua autoestima é trabalho seu. É impressionante como a partir desse ponto fica mais evidente para aquela mulher os comportamentos no entorno que lhe violam ou os que lhe são benéficos, e com facilidade constata que não precisa de elogios ao longo de suas carreiras, mais vale o RECONHECIMENTO.
Assédio sexual nas relações de trabalho é uma inconformidade ética danosa com reflexos que se expandem para muito além dos portões das empresas. Quando enfrentamos este tema nas nossas organizações colocando todos em posição de reflexão e dando lugar de fala seguro e acolhedor para todos que quiserem se manifestar, estamos acionando uma poderosa engrenagem de real transformação cultural que também avança além dos portões daquela empresa.
Compliance nas relações de trabalho, por sua natureza orgânica, poderá ser uma das maiores ferramentas de mudança nas empresas e na sociedade se receber espaço de reflexão e debate.
Veja por você mesmo: se chegaste até aqui na leitura, e está refletindo sobre o que eu trouxe nos parágrafos acima, mesmo que concordando ou discordando, é certo que já estamos juntos pensando sobre o tema assédio sexual, e quem pensa, transforma.